Em 1786, bem dentro da Abadia de Clairvaux, localizada em Aube foi constituída uma Loja de 13 Irmãos Cistercienses, sob os auspícios do Grande Oriente de França.
Que um grupo de clérigos pudesse montar uma Loja Maçônica pode, à primeira vista, parecer estranho quando sabemos da animosidade que existia entre o Catolicismo e a Maçonaria. Mas isso seria esquecer muito rapidamente a História…
Esta situação não é de fato excepcional nesse final do século XVIII, quando as bulas papais ainda não tinham esvaziado as lojas dos servos de Deus. Ela revela não uma fratura doutrinária ou ideológica, como muitas vezes é afirmado hoje, mas sim uma verdadeira convergência de ideias.
Pouco antes da Revolução, a maior parte das lojas francesas praticava uma Maçonaria exclusivamente orientada para o aperfeiçoamento do homem através do trabalho, e cuja base repousava sobre as três virtudes teologais que são a Fé, a Esperança e a Caridade. Somente a Maçonaria do tipo anglo-saxão continua hoje a manter esse ternário como um pilar fundamental da metodologia maçônica.
Extrato da correspondência endereçada ao Grande Oriente da França, pelos monges cistercienses:
Ao Or∴ de Clairvaux, lugar muito forte e iluminado onde reina a Igualdade, a Paz, a União, o Silêncio e a Amizade, no quarto dia do segundo mês do ano da V∴ L∴ 5785,
Ao Mui Respeitável, Sapientíssimo, Esclarecido e único legítimo G∴ Or∴ de França
Nós estávamos na escuridão da irregularidade; para sair, nós nos dirigimos à R∴ L∴ Union de la Sincérité no Or∴ de Troyes, para que ela nos forneça através dos seus raios luminosos os meios para alcançar o caminho que conduz à via do augusto centro tribunal dos verdadeiros maçons; por conseguinte, no quinto dia de Abril no ano da V∴ L∴ 5785, traçamos uma prancha que endereçamos a essa R∴ L∴ para convidar os IIr∴ que a compõem a visitar os nossos trabalhos e nos indicar a qualidade dos materiais necessários a empregar para fundar o templo que queremos erigir. Esses RR∴ IIr∴ tendo-nos feito esse favor e impactados pelo brilho deste primeiro raio de verdadeira Luz, inspiraram-nos ainda mais o desejo de nos submetermos às Leis e regulamentos do vosso ilustre Areópago; já submetidos de coração e afecto às leis da sabedoria e virtude, aspiramos a felicidade de nos comprometer por um juramento irrevogável; podeis vós, Mui RR∴ IIr∴ considerar-nos dignos desse favor, podeis perdoar a irregularidade do nossos primeiros trabalhos, podeis vós, saciando os nossos votos, completar a nossa felicidade; nós vos exortamos a que se dignem de nos conceder os seus santos votos, dignai-vos aceitar as homenagens da nossa submissão aos seus respeitáveis decretos e constituições que emanam do seu augusto tribunal, dignai-vos de nos agregar aos verdadeiros maçons.
Nós vos pedimos para confirmar o título da Loja Vertu; este não é um título desprovido de realidade, nós o gravamos nos nossos corações e os nossos trabalhos estão sob garantia; ousamos esperar que favoráveis aos nossos desejos, vós possais aceitar como nosso Deputado junto ao vosso tribunal o Mui Q∴ Ir∴ Jean Eustache Peuvert, funcionário do Parlamento em Cais d’Orleans, confiantes de que teremos nele um sólido apoio; se puderem na sua sabedoria considerar os nossos desejos …
Muitos comentaristas viram no nascimento, mas também na vida tumultuada e efémera desta Loja, apenas os conflitos entre visão secular da Maçonaria e a visão secular da religião, a origem daquilo que foi em França um verdadeiro trauma espiritual.
Eles esquecem-se de enfatizar que as Ordens monásticas são dentro da Igreja Católica bem mais do que apenas ordens religiosas. Elas são uma Ordem dentro da Ordem, porque elas derivam a sua identidade numa história muito mais profunda e mais antiga que a sua assimilação pela Igreja de Roma. Elas eram desde tempos imemoriais, os atores operativos e econômicos dos seus territórios, um pouco como também o eram as corporações de construtores antes do advento da Maçonaria.
A busca pelas virtudes teologais foi por muito tempo e quase até a recente generalização do Rito Escocês Antigo e Aceite e do Rito Francês (moderno) pela Maçonaria continental, o primeiro objeto da busca maçônica. Apenas o nome e o “logotipo” de certas Lojas atuais lembram essa realidade esquecida.
Portanto, não é surpreendente descobrir que trabalhadores apaixonados pela espiritualidade pudessem tentar completar a sua busca por outros meios que não fossem uma religião dogmática, para emancipar as virtudes essenciais da Escada de Jacob que conduz aos mesmos sonhos da maçonaria, menos religiosos de hoje: a paz e a emancipação social.
Pierre Invernizzi
Adaptado de tradução feita por José Filardo e publicada em BIBLIOT3CA
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