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Os Costumes que Pertecem ao Cavaleiro - O Livro da Ordem de Cavalaria (c.1274-1276) - Ramon Llull



1 Se a nobreza de coragem elegeu o cavaleiro sobre os homens que lhe estão abaixo em servidão, nobreza de costumes e de bons ensinamentos se convém ao cavaleiro, porque nobreza de coragem não pode subir na alta honra de cavalaria sem eleição de virtudes e de bons costumes. Logo, como isso é assim, então necessariamente se convém que cavaleiro convenha com bons costumes e bons ensinamentos.

2 Todo cavaleiro deve saber as sete virtudes que são raiz e princípio de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória perdurável. Das quais sete virtudes são as três teologais e as quatro cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais são justiça, prudência, fortaleza, temperança.

3 Cavaleiro sem fé não pode ser bem acostumado porque, pela fé vê o homem espiritualmente a Deus e suas obras crendo nas coisas invisíveis. E pela fé o homem tem esperança, caridade, lealdade, e é o homem servidor da verdade. E pela fraqueza de fé, o homem descrê em Deus e suas obras e nas coisas verdadeiras invisíveis, às quais o homem sem fé não pode entender nem saber.

4 Pela fé que existe nos cavaleiros bem acostumados, vão os cavaleiros à Terra Santa de Ultramar em peregrinação e fazem armas contra os inimigos da cruz, e são mártires quando morrem para exaltar a santa fé católica. E pela fé defendem os clérigos dos malvados homens que por fraqueza de fé os menosprezam, e os roubam, e os desertam tanto quanto podem.

5 Esperança é virtude que se convêm muito fortemente ao ofício de cavaleiro porque, pela esperança relembram de Deus na batalha, em Suas coitas e em Suas atribulações; e pela esperança que têm em Deus recebem socorro e ajuda de Deus, que vence a batalha por razão da maior esperança e confiança que os cavaleiros têm no poder de Deus do que em suas forças e em suas armas. Com a esperança fortalece-se e retorna a coragem ao cavaleiro; e a esperança faz suportar trabalhos, e faz aventurar os cavaleiros nos perigos em que se metem; e a esperança os faz suportar fome e sede nos castelos e nas cidades que defendem quando são assediados. E se não houvesse esperança, cavaleiro não teria como usar o ofício de cavalaria.

6 Cavaleiro sem caridade não pode ser sem crueldade e má vontade; e porque crueldade e má vontade não se convêm com o ofício de cavalaria, por isso caridade se convém ao cavaleiro. Porque se cavaleiro não tem caridade para com Deus e seu próximo, com que amará a Deus e com que terá piedade dos homens despossuídos e com que fará mercê dos homens vencidos que demandam mercê? E se caridade não há no cavaleiro, como poderá ser cavaleiro na ordem de cavalaria? Caridade é virtude que ajusta uma virtude com outra e separa um vício do outro; e caridade é amor do qual pode ter todo cavaleiro e todo homem tanto quanto dele haja mister para manter seu ofício. E caridade torna mais fácil a grande carga de cavalaria, e assim como o cavalo sem patas não poderia suportar a carga do cavaleiro, assim nenhum cavaleiro sem caridade não pode sustentar o grande cargo que uma nobre coragem de cavaleiro sustenta para honrar a cavalaria.

7. Se homem sem corpo fosse homem, homem seria coisa invisível, e se o fosse, homem não seria o que é. Logo, se o cavaleiro fosse no ofício de cavalaria sem justiça convém que justiça não fosse o que é, ou que cavalaria fosse outra coisa contra aquela coisa que cavalaria é. E como cavalaria tem princípio de justiça, qual cavaleiro que está acostumado a fazer coisas tortas e injúrias cuida estar na ordem de cavalaria? Desfazer cavaleiro é como romper a correia da espada por trás e lhe é levada a espada, para significar que não torna útil cavalaria. Logo, se cavalaria e justiça se covêm tão fortemente que cavalaria não pode ser sem justiça, aquele cavaleiro que faz injúria a si mesmo e é inimigo da justiça desfaz a si mesmo e renega e menospreza a ordem de cavalaria.

8 Prudência é virtude pela qual o homem tem conhecimento do bem e do mal, e pela qual o homem tem sabedoria para ser amante do bem e a ser inimigo do mal; e prudência é ciência pela qual o homem tem conhecimento das coisas vindouras com as coisas presentes; e prudência é quando, por algumas cautelas e maestrias, sabe o homem se esquivar dos danos corporais e espirituais. Logo, como os cavaleiros são para encalçar e destruir os males, e porque nenhum homem se mete em tantos perigos como os cavaleiros, qual coisa é mais necessária ao cavaleiro que a prudência? Usança de cavaleiro de guarnecer e de combater não se convém tão fortemente com o ofício de cavalaria como faz usança de razão e de entendimento e de vontade ordenada; porque mais batalhas são vencidas pela maestria e sensatez que pela multidão de gentes ou de guarnições ou de cavaleiros. Logo, como isso é assim, se tu cavaleiro desejas acostumar teu filho ao ofício de cavaleiro para manter a honra da cavalaria, saiba-o acostumar a usar de razão e entendimento e tudo o que possa, para que seja amante do bem e inimigo do mal; porque por tal usança, prudência e cavalaria se ajustem e se convenham para sempre honrar o cavaleiro.

9 Fortaleza é virtude que está em nobre coragem contra os sete pecados mortais, que são carreiras pelas quais vai-se aos infernais tormentos que não têm fim: glutonia, luxúria, avareza, acídia, soberba, invídia, ira. Logo, cavaleiro que vai por tais carreiras não vai ao hospital onde a nobreza de coração faz sua habitação e sua estada.

10 Glutonia engendra debilidade do corpo por gula e embriaguez; e glutonia atrai pobreza por desprender massa em comer e em beber; e glutonia carrega tanto o corpo de viandas que engendra preguiça e fraqueza. Logo, como todos estes vícios são contrários a cavaleiro, por isso a forte coragem do cavaleiro os combate com abstinência e com continência e se tempera contra a gula e contra seus valedores.

11 Luxúria e fortaleza combatem uma contra a outra. Logo, as armas com que luxúria combate fortaleza são juventude, belas feições, muito comer e beber, ornadas vestimentas, ocasião propícia, falsidade, traição, injúria, menosprezo de Deus e do Paraíso, e pouco temor das infernais penas e com as outras armas semelhantes a estas. Fortaleza combate a luxúria relembrando Deus e seus mandamentos, e entendendo Deus e os bens e os males que pode dar, e amando a Deus porque é digno de ser amado e temido, honrado, obedecido; e fortaleza combate luxúria com nobreza de coragem, que não se deseja submeter a malvados e a sujos pensamentos, nem deseja descer de sua alta honra para estar na blasfêmia das gentes. Logo, como o cavaleiro é dito cavaleiro para combater os vícios com força de coragem, cavaleiro sem fortaleza não possui coração de cavaleiro nem tem as armas com as quais cavaleiro deve combater.

12 Avareza é vício que desce sobre a coragem para a submeter às coisas vis; logo, pela falta de nobre coragem que não defende o nobre coração de cavaleiro contra a avareza, são os cavaleiros cobiçosos e avaros, e pela cobiça fazem injúrias e coisas tortas e fazem-se submetidos e cativos daqueles bens que Deus Lhes tem submetidos. Fortaleza tem tal costume que não ajuda nenhum inimigo seu, e se o homem não lhe demanda ajuda, não deseja ajudar o homem; porque é tão nobre a força de coragem e alta coisa em si mesma, e tanta honra lhe convém ser feita, que nas correrias e nos trabalhos deve ser apelada e ajuda lhe deve ser demandada. Logo, quando o cavaleiro é tentado pela avareza a inclinar sua nobre coragem à alguma maldade, deslealdade, traição, então deve recorrer à fortaleza, a qual não encontrará fraqueza nem covardia nem enfraquecimento nem falta de socorro e ajuda. E porque com fortaleza o nobre coração pode ser forte e pode vencer todos os vícios, avaro cavaleiro, diabo, por que não és nobre, forte de coragem, por tal que não seja submetido pela avareza a vis obras e a vis pensamentos? Porque se avareza e cavalaria se conviessem, usurário, por que não és cavaleiro?

13 Acídia é vício pelo qual o homem é amante do mal e inimigo do bem; logo, este é o vício pelo qual o homem melhor pode ver sinais no homem de danação que por outro vício, e pelo contrário da acídia, melhor pode o homem conhecer sinais da salvação que por outra virtude. Logo, quem deseja vencer e superar a acídia convém que haja fortaleza em seu coração pela qual vença a natureza do corpo que pela corrupção e o pecado de Adão é aparelhada ao mal. O homem que possui acídia todas as vezes que faz o bem naquilo encontra desagrado, e quando o homem faz dano, tem desagrado quando o dano não é maior; e por isso, tal homem, do bem e do mal dos outros homens, tem trabalho e mal. Logo, uma vez que desprazer dá paixão e trabalho à pessoa, se tu, cavaleiro, desejas vencer este vício, convém pregar à fortaleza que fortaleça tua coragem contra acídia, a qual a fortaleza vence, relembrando que Deus, se faz bem a um homem ou a muitos, por tudo isso não se segue que não possa fazer bem a tu, uma vez que não lhe dá tudo quanto existe nem a tu não tira nada teu.

14 Soberba é vício de desigualdade, porque homem orgulhoso não deseja haver par nem igual e por isso ama estar só. E porque humildade e fortaleza são duas virtudes e amam igualdade e são contra o orgulho, se tu, cavaleiro orgulhoso, desejas vencer teu orgulho, ajusta em tua coragem humildade e fortaleza; porque humildade sem fortaleza não é forte contra orgulho, porque na humildade onde não existe fortaleza, força não existe, e orgulho sem força pode ser vencido. Quando estiveres guarnecido com todas as armas sobre teu grande cavalo serás orgulhoso? Não, se a força da humildade te faz relembrar a razão pela qual é cavaleiro, e se és orgulhoso, não terás força em tua coragem para vencer e expulsar (de tua coragem) os pensamentos orgulhosos. Se fores derrubado de teu cavalo e estiveres preso e vencido, serás tão orgulhoso como eras? Não, porque força corporal terá vencido e superado o orgulho na coragem do cavaleiro, não obstante que nobreza de coragem não seja coisa corporal, quanto mais fortaleza e humildade, que são coisas espirituais, devem expulsar o orgulho de nobre coragem, que é nobreza espiritual!

15 Invídia é inveja desagradável à justiça, caridade, largueza, que se convém com ordem de cavalaria. Logo, quando o cavaleiro possui fraca coragem, não pode sustentar nem seguir ordem de cavalaria. Por falta de fortaleza, que não está na coragem do cavaleiro, a inveja expulsa de sua coragem justiça, caridade, largueza; e por isso, é o cavaleiro invejoso de haver outros bens e é preguiçoso para ganhar semelhantes bens pela força das armas, e por isso diz mal daquelas coisas que gostaria de possuir daqueles que as possuem. Logo, por isso, inveja lhe faz cogitar como pudesse fazer enganos e faltas.

16 Ira é turvamento na coragem, de relembrar e entender a vontade; e pelo turvamento, a relembrança se converte em esquecimento, e o entendimento em ignorância, e a vontade em irritação. Logo, como lembrar e entender, vontade é iluminação pela qual cavaleiro busca seguir as carreiras de cavalaria, que ira e turvamento do espírito desejam expulsar de sua coragem, convém que recorra à força de coragem, caridade, abstinência, paciência, que são refreamento da ira e alívio dos trabalhos que a ira dá. Tanto quando a ira é maior, tanto é maior a força que vem à ira com caridade, abstinência, paciência; e onde a força é maior, menor é a ira e maior é a caridade, abstinência, paciência; e pela minoridade da ira e pela maioridade das virtudes acima ditas, má vontade, impaciência, e os outros vícios são menores, e onde menores são os vícios e maiores são as virtudes, maior é justiça, sabedoria; e pela maioridade da justiça, sabedoria, é maior a ordem de cavalaria.

Havemos dito a maneira segundo a qual fortaleza está na coragem do cavaleiro contra os sete pecados mortais. Agora diremos da temperança.

17 Temperança é virtude que está no meio de dois vícios: um vício é pecado pelo excesso de grandeza, o outro é pecado por pouco excesso de quantidade. E por isso, entre muito e pouco convém estar a temperança, em tão conveniente quantidade que seja virtude; porque se não fosse virtude, entre muito e pouco não haveria meio termo, e isso não é verdade. Cavaleiro bem acostumado deve ser temperado em ardor e em comer, e em beber, e em parlar, que se convém com mentir, e em vestir, que há feito amizade com vanglória, e em ser esbanjador, e em todas as outras coisas semelhantes a estas. E sem temperança não poderia manter a honra de cavalaria, nem a poderia fazer estar no meio, que é virtude por seu corpo não estar nas extremidades.

18 Usança de cavaleiro deve ser ouvir missa e sermão e adorar e pregar e temer a Deus; porque, por tal costume, cavaleiro cogita na morte e na vileza deste mundo e demanda a Deus a celestial glória e teme as infernais penas, e por isso, usa das virtudes e dos costumes que pertencem à ordem de cavalaria. Mas cavaleiro que disso faz contrário e crê em augúrios e presságios, faz contra Deus, e possui maior fé e esperança no vento de sua cabeça e nas obras que fazem as aves e nos presságios, que em Deus e Suas obras. E por isso, tal cavaleiro não é agradável a Deus nem mantêm a ordem de cavalaria.

19 O carpinteiro nem o sapateiro nem os outros mesteirais não poderiam usar de seus ofícios sem a arte e a maneira que pertence a seu ofício. Logo, como Deus tem dado razão e discrição a cavaleiro para que saiba usar de feitos de armas quando mantém a regra e a arte de cavalaria, e o cavaleiro deixa sua discrição e seu entendimento — e razão lhe significa e lhe demonstra — e expulsa nobreza de sua coragem e segue augúrios e presságios, então é assim como o homem louco que não usa de razão e faz à aventura o que faz. E por isso, tal cavaleiro é contra Deus e, segundo a razão, deve ser vencido e superado pelo seu inimigo que usa contra ele de razão e de discrição e da esperança que possui em Deus. E se isto não fosse assim, seguir-se-ia que augúrios e presságios e alma sem razão se conviessem melhor à ordem de cavalaria que Deus, discrição, fé, esperança e nobreza de coragem, e isso é impossível.

20 Assim como o juiz segue seu ofício quando julga segundo testemunhas, assim cavaleiro faz seu ofício quando usa de razão e de discrição, que lhe são testemunhas disso que deve fazer em feitos de armas. E assim como o juiz daria falsa sentença se não julgasse segundo testemunhos e julgasse por augúrios e presságios, assim cavaleiro faz contra o que é de seu ofício quando desmente o que a razão e discrição lhe demonstra, e crê só o que as aves fazem por suas necessidades e por seu corpo vão voando à aventura pelo ar. Logo, como isto é assim, donde por isso cavaleiro deve seguir a razão e a discrição e o significado que as armas significam, segundo o que acima havemos dito; e do que só que se faz a aventura, não deve fazer necessidade nem costume.

21 Ao cavaleiro se convém que seja amador do bem comum, porque para comunidade de gentes foi eleita cavalaria, e bem comum é maior e mais necessário que o bem especial. E ao cavaleiro se convém belamente parlar e belamente vestir e haver belo arnês e ter grande albergue, porque todas estas coisas são necessárias para honrar cavalaria. Ensinamento e cavalaria se convêm, porque vilania e ligeiras palavras são contra a cavalaria. Privança de bons homens, lealdade, verdade, ardor, verdadeira largueza, honestidade, humildade, piedade e as outras coisas semelhantes a estas pertencem ao cavaleiro, porque assim como homem deve conhecer a Deus toda nobreza, assim cavaleiro deve homem comparar tudo seu como cavalaria recebe honra por aqueles que estão em sua ordem.

22 Pelo costume e bons modos que cavaleiro faz a seu cavalo não é tão mantida a honra da cavalaria como é no costume e nos bons modos que cavaleiro faz em si mesmo e em seu filho; porque cavalaria não está no cavalo nem nas armas, antes está no cavaleiro. Logo, por isso, cavaleiro que acostuma bem seu cavalo e acostuma a si mesmo e seu filho a malvados modos, faria de si mesmo e de seu filho, se fazê-lo pudesse, besta, e faria de seu cavalo, cavaleiro.

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